Uma longa travessia do deserto
Partimos da capital da Namíbia, Windhoek, num pequeno, mas moderno avião monomotor. Foi um voo de pouco mais de uma hora. Tranquilo, sereno… um contraste gigante com a tensão nervosa que a discussão da manhã tinha provocado nos nossos espíritos.
“Não devia ter vindo” — repetia para mim, enquanto a paisagem lá em baixo corria veloz e ficava cada vez mais estranha. Por fim pousamos.
A localização da pequena pista de terra batida era verdadeiramente espetacular. Lembrava as fotografias que as sondas espaciais enviam da superfície de Marte...
A vida tem destas ironias. De certa forma este cenário era perfeito para um casal desavindo — o deserto mais antigo do mundo. Um chão árido, avermelhado, com dunas altas e instáveis. Sem sinal (aparente) de vida…
Olhei para o lado, à procura daquele olhar cúmplice que sempre me esperava quando chegávamos a um novo destino... Nada, só o vazio…
“Não devia ter vindo”.
Como uma ilha de luxo no meio de nada, o Sossusvlei Desert Lodge esperava-nos. Deixei-me estar calada enquanto um simpático funcionário nos dava as boas vindas e explicava uma série de coisas sobre a acomodação e os passeios reservados.
Já no quarto, o silêncio instalou-se. Eu queria falar, mas as palavras morriam-me na boca.
“Não devia ter vindo”
Por sorte, um novo confronto foi adiado pelo extenso programa que tínhamos marcado. A primeira excursão começava dali a minutos.
Com a ajuda de um guia, fizemos uma caminhada de cerca de 45 minutos até a entrada de uma caverna que ficava no limite do Parque Nacional Namib-Naukluft, mais propriamente na Reserva Natural Namib Rand, uma propriedade privada. O início da caminhada foi fácil, mas para o fim o terreno apresentava-se mais rochoso e íngreme. Incomodou-me que ele não me tivesse dado a mão nalguns trechos mais difíceis, mas não me queixei.
Aquilo que queríamos ver era uma série de pinturas feitas há 2.000 ou mais anos atrás. A tinta usada era uma mistura de sangue animal e pó de rocha ocre. Surpreendeu-me o quão bem preservadas estavam as pinturas já que se encontravam completamente expostas aos elementos.
“O sangue derramado em prol da arte é duradouro” — pensei.
Ao contrário da ida, no caminho de regresso apanhamos muito vento, muita poeira e o guia calado. O silêncio, que eu tanto prezo e que sempre fora tão confortável entre nós, agora parecia-me absolutamente insuportável.
Eu sentia-me miserável...
Uma nova paragem no Lodge para refrescar e, com um mínimo de palavras trocadas, estávamos de novo em movimento, desta vez num 4x4, a acelerar ao longo do topo e das laterais das belas dunas de areia vermelha da Reserva Natural Namib Rand.
Ele divertiu-se tanto com a experiência, que por momentos esqueceu-se que estava zangado comigo.
A esperança renasceu...
O dia estava a terminar e o por do sol parecia mudar a paisagem minuto a minuto, lançando sombras e pintando com cores fortes todo o cenário à nossa volta. Estávamos sozinhos e o silêncio era, mais uma vez, ensurdecedor.
— Podemos falar? — perguntei.
— Não há nada mais para dizer — respondeu com frieza
A esperança morreu...
Senti, que ele estava a usar o silêncio para controlar a situação. Um silêncio manipulador que sufocava. Aquele tipo de silêncio insidioso em que não compartilhamos os nossos pensamentos para tentar controlar as reações e o comportamento do outro.
Aquele silêncio que é usado para punir e para obstruir qualquer oportunidade de resolução.
Calei-me. Não valia a pena insistir.
“Não devia ter vindo”
Jantei no quarto, ele no restaurante. Quando voltou já eu estava deitada na cama. Não tentei qualquer aproximação.
Durante a noite senti a sua respiração e as voltas que dava na cama. Não dormia. Eu também não. Ainda assim continuamos calados.
Por cima de nós brilhava o céu estrelado da única Reserva Internacional Dark Sky da África.
Cá em baixo, porém, só escuridão...
Era de madrugada quando saímos para visitar o Mar de Areia da Namíbia (Namib Sand Sea) — uma das maravilhas naturais do país. O acesso facilitado ao Parque Namib-Naukluft, onde está integrado este Património Mundial da Humanidade, foi a principal razão para termos decidido escolher como base a região de Sossusvlei.
Localizado na costa do Atlântico Sul da África, este deserto é o coração da Namíbia. É uma área imensa, com espetaculares dunas de areia, empilhadas em incríveis formações que resultam principalmente da interação dos ventos terrestres e marítimos, bem como da influência do fluxo de rios sazonais e de eventos ocasionais de inundação.
O guia propôs que subíssemos a Duna 45 — provavelmente a duna mais famosa e fotografada de Sossusvlei.
Com 170 m de altura, a Duna 45 pode parecer fácil de escalar, mas as encostas incrivelmente íngremes tornam difícil chegar ao topo.
Debati-me durante a subida, abatida pelo esforço físico, pela falta de sono e pela fragilidade emocional. A vista, no entanto, compensou.
Aquela paisagem era surreal!
A areia sob os nossos pés, apresentava uns vibrantes tons de laranja e vermelho que os primeiros raios do sol só pareciam realçar. Era como se ao longo de milhares de anos, a areia tivesse, literalmente, enferrujado com a neblina matinal e se transformado num extraordinário “mar” que seguia até ao infinito e depois abraçava o azul do céu.
Na língua nàmá local, “Namib” significa "uma área onde não há nada”, mas este lugar árido e inóspito estava longe de ser um local sem vida. O deserto mais antigo do mundo possui uma diversidade notável de plantas e animais que desenvolveram adaptações especiais para conseguir viver neste ambiente difícil e hostil.
Tive de aceitar a palavra do guia porque à primeira vista eu não conseguia ver vida em lado nenhum.
Talvez fosse o estado de espírito a cegar-me...
Na descida escorreguei. A mão que veio em meu auxílio voltou a dar-me esperança, mas foi muito breve.
Vimos o Big Daddy, outra famosa duna, e depois seguimos até Dead Vlei — Uma espécie de floresta desolada, preservada no tempo.
É uma paisagem estranha, um lugar sem volta, ainda mais antigo e muito mais morto do que as dunas de Sossusvlei.
Por Dead Vlei já passou um rio, mas depois o clima mudou e as dunas acabaram por isolar toda aquela área. Ficou demasiado seco até para as árvores se decomporem e elas simplesmente queimaram sob o sol ardente, criando uma floresta estéril formada por esculturas pós-apocalípticas.
Aquela visão deu-me vontade de chorar.
O ar quente atingiu os meus olhos como um secador de cabelo. Parecia sugar toda a humidade da minha pele.
Eu senti-me tão seca e morta como aquela paisagem.
Então o deserto sussurrou-me: “Nenhuma bússola te pode orientar aqui”.
Talvez eu estivesse a alucinar por causa do calor, ou talvez estivesse mesmo a enlouquecer... do sol, da culpa, da dor...
Não devia ter vindo! — Tive vontade de gritar.
Achei que poderia ir até ali, até ao deserto mais antigo do mundo e “consertar” todos os problemas. Que ingénua!
Em vez disso fui confrontada com a verdade desconfortável da minha própria realidade. Aquela não era mais uma viagem, uma nova aventura ou um conteúdo para a conta de Instagram... Não, aquela era a minha travessia do deserto.
E eu estava ali só, completamente só. A lamentar a minha sorte.
A paisagem de Dead Vlei agredia-me como um espelho refletor. Fazia-me doer o corpo. Doer a alma.
Estéril. Incapaz de dar fruto. Não por natureza, mas por opção.
Essa era a sua acusação contra mim. Esse era o meu crime.
— Quando vais estar pronta? — Perguntara-me na manhã da discussão pela centésima vez.
— Não sei... talvez nunca...
Eu tentei no passado. Aconteceu.
...e depois não aconteceu.
“Deus não quis” — disse-me alguém.
Entretanto algo secou, como o rio que outrora correu no Dead Vlei, e o desejo morreu em mim.
Depois veio a confirmação da doença autoimune e com isso alguma validação de que eu estava certa.
“Mas hoje em dia, isso não é impedimento” disse-me a médica.
“Podemos tentar” — disse-me ele,
“Há várias formas”
Não disse que sim. Não disse que não. Só disse: the timing is bad.
Sendo a relação à distância, o timing nunca seria bom... Mas ele nunca desistiu.
Nasceu a culpa: ”Deve haver algo de errado comigo, tantas mulheres querem e não podem ou não conseguem... Como queres que alguém compreenda a tua posição?.”— dizia-me o subconsciente.
“É um direito teu, não há nada de errado” contestava o lado mais racional.
Pensei que estava bem. Que apesar de tudo era uma pessoa equilibrada...Até aquela discussão, até aquele maldito meltdown em pleno Deserto da Namíbia.
Eu soluçava e as lágrimas corriam imperáveis quando a sua mão limpou o meu rosto e tirou-me da solidão.
— “Não fiques assim, acalma-te. Tudo se há-de resolver”.
Voltamos a falar, a abraçar, a beijar, a partilhar, porém não terminou ali a minha travessia do deserto.
Há anos já, que o Dead Vlei ficou para trás, mas a imagem daquele campo estéril ainda está muito presente na minha vida.
A travessia ainda agora começou...