Hoje o mundo passa bem sem nós
Chuva… vento. São 08:00 da manhã, mas parece o fim da tarde, tão pouca é a luz que entra pela janela.
Permito-me ficar na cama a preguiçar…
Olho as gotas que dançam nos vidros e oiço o batucar da chuva no telhado.
Viajo até outra manhã, já longínqua, há 3 anos atrás.
Também chovia assim, e o vento uivava, mas em Paris, naquele quarto de hotel com vista para a Torre Eiffel, o calor dos lençóis mantinha bem afastava a tempestade.
“Bon jour!”, ouvi à porta.
Saltei da cama e vesti o roupão. O room service tinha acabado de chegar com o pequeno almoço: croissants quentinhos, panquecas com nutela, morangos, café jamaicano Blue Mountain… tão aromático que só o seu cheiro aquecia o ar.
Afastei à pressa a garrafa de Château Rollan de By e os dois copos que ocupavam a mesa. Denunciavam uma noite longa… romântica... cheia de cumplicidades.
O funcionário pousou a travessa com a comida e saiu.
Liguei o iPhone à coluna. O cenário pedia música.
A voz doce de Angèle cantava (o nada doce) "Balance Ton Quoi", canção pouco apropriada para o momento, reconheço, mas naquela época eu não conseguia parar de a ouvir.
“Donc laisse-moi te chanter
D'aller te faire en, hmm-
Ouais j'passerai pas à la radio
Parce que mes mots sont pas très beaux
Les gens me disent à demi-mot
Pour une fille belle t'es pas si bête
Pour une fille drôle t'es pas si laide
Tes parents et ton frère ça aide
Oh, tu parles de moi
C'est quoi ton problème?
J'ai écrit rien qu'pour toi le plus beau des poèmes”
Peguei num croissant e enchi uma chávena com café. Fui espreitar a janela. Lá fora o mundo corria. Era um dia de semana.
Na rua uma mãe puxava o filho pela mão, claramente exasperada. O pequenito, nem por isso. Pulava as poças de água, deixava descair o chapéu de chuva para o lado e ria alto quando a mãe zangada tentava pôr o chapéu no lugar.
Um grupo de jovens (estudantes talvez?) conversava animadamente à saída do metro, completamente indiferentes às centenas de pessoas que passavam apressadas a caminho do trabalho.
Parou de chover. Tentei identificar (sem sucesso) no 7.º arrondissement o Museu d’ Orsay. Tinha estado lá no dia anterior.
É um dos meus museus favoritos em Paris. Perco (ganho) sempre uma ou duas horas a passear por lá. Gosto de visitar as exposições temporárias e de rever a fascinante história do impressionismo. Gosto de entender as diferenças e influências mútuas entre artistas como Courbet e Manet. Fico sempre sem saber se me devo chocar ou maravilhar com a beleza crua, quase pornográfica de “L'Origine du monde”.
Passo por Degas, Cézanne e Monet. Emociono-me com os pós-impressionistas como Vincent Van Gogh e Vlaminck, com as suas cores vibrantes e ondulantes e estilos "antinaturalistas”. Não há dúvida que ajudaram a pavimentar o caminho para a abstração da pintura do século XX…
Saindo do museu, gosto de caminhar pelo bairro de Saint-Germain-des-Prés e parar num dos cafés onde tantos artistas e escritores trabalharam. A livraria L'Ecume des Pages é outra paragem obrigatória. É raro sair de lá sem algo debaixo do braço.
O livro que comprara na tarde anterior, ali estava, em cima da mesinha de cabeceira, à espera de uma hora mais ociosa (mais solitária) para ser aberto.
Ainda à janela, vi um casal a beijar-se debaixo de uma árvore. Ele passou-lhe a mão pelo rosto e puxou-a para perto, como que a querer protege-la do frio. Senti-me uma intrusa a observa-los por isso desviei o olhar.
Do IPhone ecoava agora a voz de Zaz…
“Éblouie par la nuit à coups de lumière mortelle
A frôler les bagnoles les yeux comme des têtes d'épingle
Je t'ai attendu 100 ans dans les rues en noir et blanc
Tu es venu en sifflant”
Volta para a cama, disse-me ele.
Sim, respondi-lhe.
Hoje o mundo passa bem sem nós.